Inoque Antonio Capece  tem 27 anos e vive no distrito de Mopeia, em Moçambique. De há um ano a esta parte é trabalhador no terreno para BOHEMIA. Todas as manhãs, Inoque Antonio conduz vários quilómetros com a sua camioneta para recolher dados sobre a população e o território da Mopeia, um dos dois locais do projeto.

Já se implementaram inúmeras estratégias de controlo da malária em diferentes partes do mundo. Algumas foram muito bem sucedidas, tal como ficou demonstrado pela recente certificação da China como país livre de malária por parte da Organização Mundial da Saúde (OMS). Muitas destas estratégias fundamentam-se nos resultados de ensaios clínicos de novos fármacos contra a malária. Normalmente, os voluntários que participam neste tipo de ensaios são recrutados através dos centros de saúde. Embora BOHEMIA seja um ensaio clínico, é bastante fora do comum nesse aspeto.

“A complexidade do projeto reside não só na forma como recolhemos os dados, mas também na complicada logística que supõe organizar todos os trabalhadores no terreno, que irão visitar dezenas de milhares de agregados familiares”

“O modelo do nosso projeto é totalmente oposto àquilo que é habitual: os nossos trabalhadores no terreno visitam todos os agregados familiares da nossa zona de estudo. Em Mopeia, isso significa visitar cerca de 25 mil agregados familiares”, comentou Paula Ruiz-Castillo, uma investigadora de pós-doutoramento de BOHEMIA. “Primeiro, temos de levar a cabo um censo, o que significa atribuir a cada agregado familiar um número e obter dados básicos acerca das pessoas que vivem no mesmo: quantas pessoas é que aí vivem, se estiveram ou não recentemente infetados com malária, se têm ou não animais domésticos, etc.”

Como sublinhou Ruiz-Castillo, a complexidade do projeto reside não só na forma como recolhemos os dados, mas também na complicada logística que supõe organizar todos os trabalhadores no terreno, como Inoque Antonio, que irão visitar dezenas de milhares de agregados familiares num período de vários meses. “Uma vez concluído o censo, podemos começar o ensaio clínico propriamente dito: nós distribuímos o fármaco e recolhemos informação adicional – por exemplo, acerca da utilização que as pessoas fazem do sistema de saúde, dos possíveis efeitos adversos do fármaco e do estado de saúde dos participantes.”

Inoque Antonio e outros trabalhadores no terreno levam consigo tablets equipados com um software que os ajuda a realizarem o seu trabalho. “A digitalização tem sido fundamental no avanço de muitos projetos relacionados com a malária, nomeadamente aqueles que têm lugar nas zonas rurais de África”, explicou Ruiz-Castillo. “Antes de dispormos destas ferramentas, a recolha de dados era feita com papel e caneta, o que despendia muito tempo e nos conduzia a erros humanos.” Mas o que é que a tecnologia de BOHEMIA tem de especial?

BOHEMIA field worker collecting data

Trabalhador de campo coletando dados

Digitalização à medida

O projeto BOHEMIA está a ser levado a cabo na região de Mopeia, em Moçambique, e em Rufiji, na Tanzânia. Mopeia tem cerca de 135 mil habitantes, dos quais uma percentagem importante vive em zonas rurais por mapear.

A primeira tarefa de Inoque Antonio foi viajar por uma determinada área de Mopeia, localizar os agregados familiares, mapear cada uma das casas e atribuir-lhes um número. Os trabalhadores no terreno também identificam as instalações onde se guardem animais domésticos – os animais são uma fonte adicional de alimento para os mosquitos, e o projeto BOHEMIA prevê tratar também os animais domésticos com ivermectina. Por último, uma vez que o projeto visa reduzir a população de mosquitos responsáveis pela transmissão da malária, os trabalhadores no terreno também têm de mapear todos os recursos hídricos que encontrarem: rios, tanques, poços, etc., já que estes constituem zonas de reprodução dos mosquitos.

Os trabalhadores no terreno também têm de mapear todos os recursos hídricos que encontrarem: rios, tanques, poços, etc.

Este mapeamento intensivo é possível, em parte, graças ao nosso parceiro no projeto DataBrew. Com o software de acesso aberto OpenDataKit, este ajudou-nos a desenvolver tecnologias adaptadas às necessidades de BOHEMIA. “As novas tecnologias tornaram possível mapear zonas rurais e organizar dados que nos permitem otimizar as visitas dos trabalhadores no terreno, assim como as subsequentes análises”, comenta Joe Brew, CEO de DataBrew. “Uma das maiores vantagens do nosso método é que funciona como uma app offline, o que significa que a escassez de acesso à Internet na grande maioria das zonas rurais de Mopeia não tem sido um impedimento para os trabalhadores no terreno.”

Estas ferramentas feitas à medida, desenhadas em colaboração com BOHEMIA, também tornam possível lidar com os imprevistos que costumam surgir neste tipo de projetos. “Quando contamos e registamos uma casa, pintamos um número na porta. Às vezes, descobrimos mais tarde que o número despareceu, seja porque a chuva apagou a tinta ou porque a família instalou uma porta nova, etc.”, comentou Eldo Elobolobo, o gestor de dados de BOHEMIA em Mopeia. “Podemos cruzar todos os dados associados a essa casa e encontrá-la facilmente, inclusive sem acesso à Internet. No Moçambique rural, esta tecnologia não tem preço.”

DataBrew dahsboard

Painel de controle do DataBrew

Otimização do tempo

A redução de erros é outra vantagem das tecnologias desenvolvidas. “O papel do gestor de dados é preparar e validar os dados”, comentou Elobolobo. “Os trabalhadores no terreno empregam normalmente vários meses a recolher dados. Uma vez concluída essa tarefa, fazemos aquilo que se conhece como limpeza dos dados – detetamos e corrigimos possíveis erros.” O problema deste processo é que a limpeza dos dados é efetuada muitos meses após a recolha dos mesmos, sendo nessa altura difícil corrigir os erros, restando apenas a opção de descartar os dados afetados.

Numa visita domiciliária, Inoque Antonio introduziu um dado em que se indicava que a casa 23 no censo estava habitada por quatro pessoas que tinham 111 vacas. Ter 111 vacas não é impossível, mas é muito improvável neste contexto. O software desenhado deteta este tipo de anomalias e envia automaticamente uma mensagem de aviso para a aplicação do gestor de dados. Ao detetar a anomalia, Elobolobo contactou com Inoque Antonio e pediu-lhe para confirmar o número de vacas na casa 23, que na verdade era 11.

Esta tecnologia feita à medida gera também relatórios semanais com base nos dados recolhidos. “O relatório semanal mostra todo o progresso da semana anterior: número de casas contadas por dia, por semana, por trabalhador, etc. Isto permite-nos otimizar consideravelmente o nosso trabalho e identificar possíveis problemas”, comentou Paula Ruiz-Castillo.

“Se os avanços biomédicos são o motor do progresso no controlo da malária, a inovação tecnológica é certamente o combustível que o alimenta”

Alguns meses atrás, enquanto estava a examinar os relatórios semanais, o analista de dados apercebeu-se de que havia uma equipa no terreno na Tanzânia que estava a gastar mais tempo a deslocar-se até uma área do censo do que a entrevistar os moradores locais. Depois de identificar esta zona como uma área de difícil acesso, o projeto disponibilizou alguns trabalhadores no terreno para pernoitarem na zona até à conclusão do censo.

“Muitas vezes pensamos que o progresso contra a malária depende exclusivamente do desenvolvimento de novas estratégias de controlo de vetores e de novos tratamentos para a doença. No entanto, a inovação tecnológica tem igualmente um papel primordial na implementação dessas estratégias”, comentou Ruiz-Castillo. “Se os avanços biomédicos são o motor do progresso no controlo da malária, a inovação tecnológica é certamente o combustível que o alimenta.”

Inoque Antonio Capece coletando dados sobre a população

Inoque Antonio Capece coletando dados sobre a população