Em junho de 2004, Charfudin Sacoor começou a trabalhar no Centro de Investigação em Saúde de Manhiça (CISM), parceiro do Projeto BOHEMIA. Desde 2010, dirige o Departamento de Demografia, sendo responsável pela coordenação dos processos relacionados com a recolha, introdução, limpeza e análise de dados. Trabalha atualmente como demógrafo no âmbito do Projeto BOHEMIA.
Quando era criança, o que queria ser quando crescesse? Já querias ser um cientista?
Bem, quando era criança queria ser várias coisas quando crescesse, mas nunca me passou pela cabeça ser pesquisador. Aliás creio que isto era coisa que não fazia parte do vocabulário de muitas crianças da minha época e quero acreditar que muito menos no vocabulário dos adultos. O meu interesse pela pesquisa surgiu muito tarde, quando já estava na universidade. Foi na universidade quando cursava a Licenciatura em Geografia que comecei compreender e ter interesse sobre esta área. E iniciei la os meus primeiros passos, e os meus primeiros trabalhos. O meu trabalho de fim curso por exemplo, fi-lo na cidade de Nacala no norte de Moçambique em 2003 e era sobre erosão dos solos que me preocupava bastate, e ate hoje a erosão constitui um problema serio para aquela cidade que me viu nascer.
Que pessoa ou situação te inspirou a trabalhar na malária?
Eu entrei para o CISM em Junho de 2014 e nessa altura o Centro estava vivendo um momento histórico, pois decorriam na altura o ensaio clinico da vacina da malaria, a RTS,S. Este ensaio estava na agenda do dia e era uma grande esperança na luta de malaria para o pais e o para o Mundo. Portanto, comecei a trabalhar com os principais mariólogos que o centro e o pais tinha na altura e acabei ficando contagiado. Lembro que um ou dois meses depois da minha chegada a equipa da vacina, na altura liderada pelo Dr Pedro Alonso, deu-me a missão de incluir a localidade de Taninga no sistema de vigilância demográfica do CISM. O Dr Pedro Alonso foi sem dúvida essa pessoa que influenciou toda minha trajetória.
O que pensaste primeiro sobre a utilização de Ivermectin no controlo do paludismo?
A primeira vez que ouvi esta ideia, foi com o Dr Carlos Chaccour. Foi algo surpreendente. Primeiro por nunca tinha ouvido falar deste fármaco que poderia ter estes múltiplos benefícios e depois também compreender donde, como e porque o Dr Carlos Chaccour. teria inventado esta ideia fazer o controlo da malaria combinando humanos e animais. Sendo a malaria um problema secular e ainda com vários desafios para ser erradicado, apareceram-me logo vários pontos de interrogação o que me levou a me informar bem para compreender melhor primeiro o próprio fármaco e depois as ideias e todo conceito cientifico a volta deste estudo e hoje com a ajuda da minha equipa estou dar o meu contributo para a implementação do mesmo.
O Dr Pedro Alonso foi sem dúvida essa pessoa que influenciou toda minha trajetória.
Trabalha como demógrafo no projecto BOHEMIA. Que papel desempenha um demógrafo?
O Projecto Bohemia esta sendo implementado numa área rural onde a dinâmica demográfica é enorme, falo por exemplo de nascimentos, mortes, migrações para além de outras dinâmicas socioe-conómicas, de saúde, habitação, etc. Portanto, para preparar e organizar toda logística e toda componente de intervenção do estudo e crucial ter dados socio-demograficos fiáveis. Para alem deste elemento, dada a especificidade da intervenção, era imperioso ter uma plataforma que permite identificar as pessoas de acordo com as suas características, sexo, a idade, localização geográfica e outros co-factores importantes para alem de ter dados sobre a população animal que são uteis para a implementação do estudo e interpretação do resultados. Portanto, o nosso papel como Demografo é gerar toda informação socio-demográfica de base para permitir a realização do estudo e também ajudar na determinação do impacto da intervenção.
Como é um dia normal no seu trabalho?
O meu normal de trabalho não tem uma rotina linear. Faço um conjunto de actividades que vai deste reuniões administrativas e de gestão, reuniões técnicas, acompanhamento e supervisão de actividades do pessoal da minha equipa, trabalho de campo, manipulação de dados, formações, leitura a redação de documentos como procedimentos específicos para os estudos onde estou envolvido, protocolos e artigos. Tenho trabalhado também com estudantes, faco revisão de protocolos como membro do Comité Cientifico do CISM, entre outras coisas. O meu Departamento envolve equipas grandes de trabalhadores de campo o que implica muitos meios de trabalho e vários desafios. Temos actividades na Manhiça e nas províncias e dada esta particularidade há uma necessidade enorme de gerir vários assuntos logísticos, administrativos e técnicos. Também há muito interação com parceiros externos em diferentes fusos horários que tens que interagir com eles.
Quais são os obstáculos que enfrenta na recolha e manipulação de dados?
Colher dados no nosso contexto não é um processo fácil. Existem vários desafios que enfrentamos neste processo que pode estar ligado por um lado aqueles que colhem os dados mas também para aqueles que nos fornecem os dados, os participantes neste caso. Para nos que colhemos os dados, principalmente nesta era digital temos desafios ligados a internet, o acesso a energia eléctrica para carregar os nossos equipamentos, o processo de administração de consentimento informado em comunidades remotas onde muitas pessoas não sabem ler e escrever, as vias de acesso para chegar as comunidades, as fricções políticas nas comunidades que de certa forma condicionam a aceitabilidade, entre outros. Do lado do participante, é preciso lidar com o conceito de pesquisa que ainda é um tabu para eles, lidar com a ansiedade e a expectativa de ter um benefício ou uma solução imediata em relação aos problemas de saúde que elas enfrentam.
E preciso continuar buscar recursos financeiros para ajudar os países mais pobres e com um sistema de saúde deficitário.
Desde 2010, é o líder do Departamento de Demografia do Centro de Investigação Sanitária da Manhiça. A recolha e análise de dados mudou significativamente ao longo destes 10 anos. Poderia descrever algumas melhorias para o seu trabalho quotidiano?
O Departamento de Demografia vinha desde 1996 com um sistema recolha de dados baseado em papel e quando assumi a responsabilidade do Departamento, o meu principal desafio era mudar esse paradigma. O uso de papel envolvia custos de digitação, falo de pessoas, computadores, sala para digitação. Também havia o desafio de fazer a gestão do papel. Na altura a Demografia tinha cerca de 1 milhão de questionários em papel produzidos e isso demandava espaço de armazenamento e formas de conservação. Portanto, foi necessário migrar para o digital. Começamos com PDAs e mais tarde migramos para os tablets. Esta mudança permitiu trazer melhorias no processo de colheita de dados, que passou ser mais rápido, menos limitado em termos de recursos humanos, e também permitiu aumentar o volume e a qualidade de informação que colhíamos. Este processo praticamente culminou com o nosso conceito de paper free na recolha de dados no campo a nível do Centro, havendo um e outro estudo dada sua especificidade ainda continuam com papel. Contudo, novos desafios inerentes a recolha de digital vem surgindo e nos temos que estar atentos e procurar soluções para contornar isso. A tecnologia não é estática e isso obriga-nos a nos reinventarmo-nos a cada dia.
O que pensa ser necessário para fazer avançar a luta contra a malária, e como é que BOHEMIA se encaixa?
Esta é uma questão muito interessante, pois hoje em dia a humanidade tem mais informação e ferramentas para combater a malaria mas os ganhos nessa luta ainda criam assimetrias geográficas. E preciso continuar buscar recursos financeiros para ajudar os países mais pobres e com um sistema de saúde deficitário. E preciso formar as pessoas nesta área e educar as populações. Alocar todas as medidas preventivas que se acharem eficazes para cada contexto, meios de diagnósticos e de tratamento adequados. Agora, em relação ao projecto Bohemia, julgo ser uma abordagem interessante que vai complementar as ferramentas de prevenção de uso comum, que são as redes mosquiteiras e a pulverização intradomiciliaria, agindo sobre os mosquitos que escapam dessa barreira de prevenção, actuando sobre os humanos e os animais. Enquanto não houverem vacinas disponíveis estas medidas continuarão a ser a nossa esperança, mas sem nunca ficarmos de braços cruzados, pois medidas eficazes hoje, amanha podem não ser.